quarta-feira, 18 de março de 2009

TEXTOS DE AUTOLIDERANÇA - UMA JORNADA ESPIRITUAL

AUTOLIDERANÇA – UMA JORNADA ESPIRITUAL
ROBSON GOUDARD SANTARÉM
(Para maior consciência na gestão de (com) pessoas)

INTRODUÇÃO
Ao longo da história, o ser humano vem se desenvolvendo, criando, explorando, inventando e se tornando, cada vez mais, senhor de todas as coisas. Mas, certamente, ainda não é senhor de si mesmo. Em muitas situações, é escravo do que ele próprio construiu. Embora tenha dominado tantos conhecimentos, ainda ignora o mais importante de todos: o conhecimento sobre si mesmo e sobre o seu estar no mundo.
Assistimos às grandes mudanças, boas e más, sofridas pelo mundo, e sabemos que são irreversíveis. Trazem consigo exigências profundas para todos e, principalmente, para aqueles que exercem função de liderança.
Há muito tempo, a sabedoria, entendida como um elevado estado de consciência característico de quem tem abertura e busca da compreensão do sentido e mistério da vida, profundo respeito pela dignidade humana, intuição, compaixão, altruísmo, priorização do bem comum etc., que as tradições espirituais nos legaram alerta sobre um outro modo de vida capaz de proporcionar ao ser humano e ao seu habitat um status de felicidade relacionado ao bem comum.
Hoje, a ciência confirma que essa sabedoria primitiva é essencial à vida e começa a ser aceita; talvez porque a humanidade não suporte mais viver em um modelo destrutivo (com tantos conflitos, intolerância religiosa, preconceitos raciais) e já estejamos atingindo uma massa crítica capaz de transformar os padrões estabelecidos até o momento.
Começa-se a questionar uma cultura tão orientada pela lógica, pela razão, e cada vez mais pessoas tomam consciência de que a racionalidade não é capaz de responder às questões mais importantes e significativas da vida. Em todas as áreas do saber, há um movimento pela busca do que é mais profundo. Pode-se, mesmo, afirmar que um novo paradigma, isto é, um novo modelo mental, já é aceito, e define que a maior parte do nosso conhecimento e da nossa percepção encontra-se no inconsciente; isto é que as tradições espirituais afirmam: existe uma sabedoria superior que nos fala, e esse dimensão espiritual é capaz de nos elevar acima de nossa percepção consciente, que é reduzida.
A massificação, tão bem estudada por Jung, distorce nossa percepção e nos hipnotiza, de tal maneira que anulamos nossa singularidade. Tornar-se um individuo é livrar-se dessa hipnose coletiva e deixar-se iluminar pelo espírito, que se manifesta nas relações harmônicas, no amor, na busca de um sentido para a vida.
Esses valores ditos humanos e/ou espirituais possibilitam às organizações empresariais alcançarem os seus resultados, mesmo em um sistema ainda tão perverso, de modo singular; eles não só contribuem para que haja harmonia nos relacionamentos interpessoais como definem, em última instância, o que é chamado de equipes de alta performance, porque sustentam o grupo e fazem com que seus membros transcendam os aspectos meramente corporativos.
A perversidade do sistema caracteriza-se pela exploração predatória do meio ambiente e do ser humano, cujos tristes indicadores são abundantes e chocantes aos mais sensíveis. Ainda há exploração de mão de obra escrava. É inaceitável que haja miséria, fome, analfabetismo, falta de moradia, diante da opulência de tantos. É perverso observar países tão ricos com populações vivendo abaixo da linha de pobreza. É perverso o gritante distanciamento das faixas salariais em uma organização. É perverso e assustador pensar que podemos caminhar para o fim...
Nesse cenário, há sinais de vida e esperança quando alguns líderes erguem suas vozes e começam a transformar os modelos de gestão nas empresas, em organizações não-governamentais e cidades, mostrando, com destemor não obstante as dificuldades, que é possível construir um outro mundo. Ainda que modesta, há uma clara evolução nas políticas corporativas de valorização do ser humano e no respeito ao meio ambiente.
Os valores humanos são/devem ser os influenciadores de políticas corporativas e a base dos processos decisórios, definindo práticas que contribuem para a credibilidade e a perenidade da organização. Além da imagem corporativa, eles criam um vínculo entre as pessoas e a organização, gerando uma identidade que mobiliza todos para a consecução de um objetivo comum. Porque, insisto, os valores humanos devem ser a fonte e o alicerce de todas as nossas ações, e determinantes dos demais “valores”, sejam políticos, econômicos, culturais, comerciais, científicos, etc.
Visto que a empresa não existe sem pessoas, e tudo o que nela se faz é feito por pessoas, quanto mais maduras e éticas elas forem, mais madura e ética será a organização. Neste nosso tempo, já não podemos recorrer a subterfúgios, que justifiquem nosso comportamento incoerente, buscando explicações para atitudes sem apresentar o esforço da transformação pessoal. É preciso que todos assumamos, responsavelmente, o destino de nossas vidas, a nossa conduta que afeta a vida do outro e a vida do planeta. Certamente isso exige disciplina, exige uma metanóia: uma profunda transformação no interior de cada um.
Para percorrer esse caminho, cada um deverá voltar-se para dentro de si mesmo e encontrar uma direção espiritual para a sua vida.
Jung diz que:

Ele deve subir na árvore da fé que cresce para baixo, pois tem as raízes fincadas na divindade. Ruysbroceck também se expressão como a ioga: “O homem deve ser livre e sem imagens. Livre de tudo o que o liga aos outros e vazio de todas as criaturas. Não deve ser perturbado pela luxúria e pelo sofrimento, pelo lucro e pelas perdas, pelas ascensões e pelas quedas, pelas preocupações em relação aos outros, pelos prazeres e pelo temor, e não deve apegar-se a qualquer criatura.” É daí que resulta a “unidade” do ser, e esta unidade significa um “estar-voltado-para-dentro-de-si.” O estar voltado para dentro de si mesmo, para dentro do próprio coração, de modo que pode sentir e compreender a ação interior e as palavras íntimas de Deus. (Jung, v.XI, § 890)

Somente uma profunda transformação da consciência possibilita a transformação do exterior. E não haverá uma transformação nas estruturas exteriores enquanto o ser humano não se transformar interiormente.
É o ser humano, único na sua individualidade, que é o elemento de diferenciação na coletividade. Tanto as grandes realizações de virtude quanto os maiores crimes são todos individuais. É, portanto, no individuo que precisamos investir, antes que as forças do coletivo o aniquilem.
Desenvolver a própria personalidade, com a coragem de quem sabe exatamente o que quer para si, quando continuamente é convocado a seguir e imitar padrões, é o maior dos desafios para o ser humano.
Assim o sábio Jung comenta:

Quanto mais conscientes nos tornamos de nós mesmos, através do autoconhecimento, atuando conseqüentemente, tanto mais se reduzirá a camada do inconsciente pessoal que recobre o inconsciente coletivo. Desta forma, vai emergindo uma consciência livre do mundo mesquinho, susceptivel e pessoal do eu, aberta para a livre participação de um mundo mais amplo de interesses objetivos. Em consciência de um mundo mais amplo de interesses objetivos. Essa consciência ampliada não é mais aquele novelo egoísta de desejos, temores, esperanças e ambições de caráter pessoal, que sempre deve ser compensado ou corrigido por contratendências inconscientes; tornar-se-á uma função de relação com o mundo de objetos, colocando o individuo numa comunhão incondicional, obrigatória e indissolúvel com o mundo. (Jung. V.VII/2 § 275).

Afirmou ele também que uma das experiências mais poderosas que uma pessoa pode ter é a experiência religiosa, porque coloca o individuo em contato com o Espírito capaz de transforma-lo, tornando-o um ser humano mais pleno, integrado, consciente de si mesmo e da sua missão no mundo.
Neste mundo tão materialista, urge resgatar a dimensão espiritual para que o humano encontre o sentido da sua vida. Porque, se é verdade que em toda a História todas as pessoas sempre necessitaram da esperança, muito mais agora é preciso enfatizar, em todos os cantos do planeta, que um outro mundo é possível, antes que essa ou aquela ideologia acabe com tudo. Mas não só anunciar; é preciso testemunhar sempre que há uma vida mais plena e que pode ser vivida por todos.
Viktor Frankl (1905-1997) foi professor de Neurologia e Psiquiatria e fundou a escola de Logoterapia – considerada a terceira escola vienense de psicoterapia (as duas primeiras são as de Freud e Adler) – após sobreviver aos horrores da Segunda Guerra Mundial, no campo de concentração de Auschwitz. Experimentou os tormentos na própria carne e, por isso, pôde declarar, com autoridade, que somente seremos homens completos quando atingirmos também a dimensão da liberdade que nasce do espírito – a liberdade que cada um de nós tem para decidir, para escolher o que deseja para si, para escolher que tipo de ser humano deseja e pode ser (Frankl, 2006)
Se não tiver uma visão consciente de si mesmo e do mundo, o lider será vitima das próprias crenças inconscientes que, no fim, determinam suas atitudes e trazem graves conseqüências para si e para todos. Se não for capaz de avaliar criticamente a si mesmo, e de também desenvolver uma consciência mais crítica e profunda sobre o que acontece no mundo, não será capaz de liderar com a maturidade que a função requer; ao contrário, o mundo invisível, inconsciente, é que dominará e traçará o destino do mundo visível e consciente.


Persona
Atores inconscientes e inconsequentes
Em benefício de uma imagem ideal, à qual o individuo aspira moldar-se, sacrifica-se muito de sua humanidade.
(C.G.JUNG)
A palavra Persona é originária da Grécia antiga, referindo-se à máscara que o ator usava e pela qual saía o som (per sonare) da sua interpretação nos diferentes papéis do teatro. A nossa “Persona”, portanto, é a máscara que usamos, não no sentido da hipocrisia e falsidade, mas como um arquétipo de adaptação social. Representa nossos veículos, com os quais nos movemos e nos relacionamos na sociedade. Nesse sentido, ela é importante para o funcionamento das relações sociais.
Ao longo da vida, vamos aprendendo a nos comportar em cada ambiente, a suprimir em nós o que é considerado inaceitável e a vestir uma espécie da máscara psicológica para podermos participar da vida social. Essa máscara – Persona – que a sociedade nos força a usar por causa de suas expectativas a nosso respeito, serve para esconder quem somos.
Entretanto, quando idealiza uma imagem à qual pretende se moldar, o individuo acaba por por anular-se, sacrificando a sua individualidade. E, assim, ao pretender caracterizar-se como individuo, a Persona revela que é, na verdade e sobretudo, uma máscara da psique coletiva. Ou seja, ela aparenta uma individualidade, mas não é uma aparência escondendo uma essência, e o que acontece, frequentemente, é que o individuo acaba por identificar-se com a máscara. Essa identificação muitas vezes é de tal ordem que o individuo não sabe mais viver sem ela. Ele á a máscara. E o grande perigo é não ser. Ela não passa de um recorte da psique coletiva, aparentando uma individualidade, procurando até mesmo convencer os outros e a si mesma da sua individualidade, quando não passa de uma representação daquilo que a psique coletiva definiu como deve ser. Ela nada possui de real; é apenas um compromisso entre indivíduo e sociedade, reduzido em seus papéis.
Como é constituída por conteúdos advindos da coletividade, quanto mais o eu consciente estiver identificado com essa Persona, tanto mais ele será aquele que aparenta, perdendo a própria individualidade: sua psique será totalmente reprodução do coletivo. Desse modo, ela representa o máximo de adaptação à sociedade e o mínimo de adaptação à própria individualidade.
Nesta sociedade, organizada sobre uma estrutura patriarcal e, a partir do século XVIII, também burguesa, o modelo de consciência coletiva se desenvolveu em torno da relação poder-submissão. Nesse universo, emergem alguns fatores determinantes para o comportamento masculino, expressos em termos de expectativas, de papéis e definições sobre o que significa ser homem, que infligem em sua alma uma opressão tal que o obriga a comportar-se de acordo com os padrões coletivos, anulando-se e sufocando a sua individualidade.
Desde que nascemos recebemos uma carga de expectativas dos nossos pais, que vão determinando nossos papéis. Nosso ego vai se formando, inicialmente, para atender a essas expectativas e receber a aprovação dos pais e da comunidade. Mas, ao longo da vida, é necessário que se faça uma distinção entre o nosso ego e os papéis que assumimos. Embora tenhamos que levar em conta os padrões e expectativas definidos pela sociedade, não podemos confundir nossa identidade com nossos papéis. A caracterização da Persona se torna extremamente forte no mundo do trabalho, definindo de tal modo o comportamento que todos vão se igualando na massa. Assim é que ser bem-sucedido está mais relacionado à capacidade de impressionar, de fazer o “marketing pessoal”, de ser competitivo, de como se vestir, dos lugares que freqüenta etc. isso muitas vezes vale mais que o caráter, mais que ser singular.
Todos nós precisamos ter consciência de que cada um utiliza as vestes para proteção e aparência, mas sabendo também que, quando quiser, pode trocá-las por outras mais confortáveis, mais apropriadas, e, até mesmo, ficar nu em outros momentos. No entanto, se as vestes – que são representacionais – grudam em nosso corpo e até teimam em substituir a nossa pele, muito provavelmente nós adoeceremos.
Essa carga opressiva sobre o individuo também se manifesta em outra emoção negativa, que regula o comportamento das pessoas desde tempos imemoriais, definindo atitudes, estabelecendo regras, ditando procedimentos. Do nascer ao morrer, o ser humano age e reage em função do medo. A criança, desde a primeira infância, tem seus medos embasados em sua própria biologia e manifesta-os pelo choro. O sentimento evolui conforme a idade, e o individuo o vai relacionando com as manifestações da natureza, catástrofes e as bruxas que povoam o seu imaginário. Na adolescência, o temor refere-se ao ridículo, à questão dos conflitos familiares e à aceitação social. Amadurece temendo o mercado de trabalho, o fracasso em seus próprios compromissos pessoais e profissionais e, sobretudo, o medo de não corresponder às expectativas, e, por fim, teme a inexorabilidade do tempo que chega, trazendo problemas para a saúde e incertezas.
Também cresce o medo do outro. O medo do contágio, o medo do relacionamento. O medo do estranho e do diferente, que passam a ser fonte de perigo. Entre tantos medos, um se destaca como patológico: o medo de si mesmo – medo de não corresponder às expectativas do coletivo, o outro passa a ser visto como um adversário que precisa ser destruído, e não como um igual, como um irmão. E sabe-se que esse medo é um campo fértil para paralisar a evolução, para o desempenho medíocre, para os baixos resultados no trabalho.
Hollis (2004) disse que o homem se liberta à medida que começa a se relacionar diretamente com os seus medos; liberta-se para se tornar o homem que deseja ser, quando decide vencer os próprios medos. Para curar-se, é preciso que ele assuma que sente medo e deixe de sentir vergonha desse sentimento. Porque o que não compreendemos dentro de nós, nós projetamos sobre os outros de tal modo que toda a sociedade fica impregnada pela Sombra que nela projetamos. E, assim, passamos a ser controlados pelo que desconhecemos em nós.
Dessa forma, o individuo se anula em sua singularidade, em seus valores, para viver em conformidade com os valores da coletividade. Ao deixar de expressar a sua individualidade, passa a se comportar pelas convenções do coletivo. E assim se forma a Persona – a identificação com o papel social - , e, com ela, surgem inúmeras neuroses. Aquele que se apresenta como um “homem forte” muitas vezes esconde uma criança frágil; a máscara de ‘poderoso’ esconde o inseguro.
É fundamental que cada um de nós aprenda a discernir entre o que é essencial, o que é ‘ser’ para si mesmo e ‘ser’ para os outros. Para isso, precisamos nos conhecer e nos aceitar plenamente, como somos, a fim de que possamos desempenhar bem a função que nos cabe.
Ao longo da história humana, o que se constitui em termos de instintos, formas de pensamento e sentimento, foi produto do coletivo; é imensurável essa carga do coletivo sobre o individual, e por ser assim tão pesada é que o individuo pode desaparecer completamente. Usando as palavras de Jung.

Para descobrirmos o que é autenticamente individual em nós mesmos, torna-se necessária uma profunda reflexão; a primeira coisa a descobrirmos é quão difícil se mostra a descoberta da própria individualidade. (Jung, v.VII/2, §242)

Essa é a primeira carga que pesa sobre os indivíduos: corresponder às expectativas que, ao longo dos séculos e em cada cultura, foram delineadas para ele, mas que, em geral, resumem-se em alienar-se e anular a individualidade para viver e manter o que exige o coletivo. O indivíduo se sacrifica, deixando a realização pessoal de lado, para dar vida ao mito, que, no caso do homem, significa trabalhar para ser o provedor da família e de quem mais lhe for incumbido sustentar, ser o guerreiro competidor, lutador e senhor de todas as coisas, e tantas outras características que o ‘mercado corporativo’ passou a definir como fatores de competitividade, incluindo aí as preocupações que acarreta possuir tal perfil.
Os modelos apresentados no mercado de trabalho e a força dos meios de comunicação social contribuem para forjar um ‘perfil’ que seja vendável, que esteja na ‘moda’ como padrão de sucesso, e corroboram para que a pessoa esqueça totalmente de ser feliz; importa mais o sucesso, a carreira profissional, do que o caminho da singularidade que leva à felicidade. Há uma grande massa na qual, cada vez mais, as pessoas se igualam nos padrões estabelecidos.
Quando esse fenômeno acontece, isto é, o papel social prevalece sobre a individualidade, o resultado pode ser uma grande inflação do ego, visto que o papel que representa se destaca, e a pessoa se esquece de que é humana e se torna apenas um papel.
Nesse papel a ser desempenhado também não há espaço para demonstrar a emoção e, tampouco, as expressões de afeto que podem significar vulnerabilidade. Nessa grande arena, o individuo é instado todos os dias a combater, demonstrando força, ou melhor, que é mais forte do que o outro, vivendo tensionado e humilhado pelas próprias forças que o arrastam, impedindo-o de saber sequer quem é ele mesmo.
Desse modo, vive o homem na superficialidade dos seus papéis incapaz de responder quem ele é, o que sente como homem, porque entende apenas do que deve fazer segundo os padrões coletivos, como pai, marido, profissional, macho etc., tornando-se escravo desses papéis. Ainda que sejam papéis honrados, eles não são o homem na sua inteireza, individualidade e dignidade.
Importa, então, que se tome consciência de si mesmo. Da Persona investida e da Sombra presente, integrando-a, porque, do contrário, o que não for assimilado será projetado sobre os outros ou vazará através de um comportamento perigoso.
Na verdade, mais que humilhado pelos outros homens e pelas mulheres, esse homem é humilhado por si mesmo. Como não suporta a ideia de se sentir frágil, ou de ser percebido como um fraco um ser vulnerável, ele silencia na sua dor; investido da Persona, muitas vezes ataca e faz os outros sofrerem, tentando esconder a si mesmo com um pretenso autoritarismo, ou outras formas de demonstração de força e poder que, de acordo com os parâmetros coletivos, sugerem masculinidade.
Ao se submeter a um comportamento imposto pelo coletivo, oprimido pelas expectativas que sobre ele recaem e pelo papel que lhe é exigido viver, o homem, assim humilhado, degrada-se e passa também a destruir.
Muitos homens escondem tais emoções atrás de um modo workaholic de ser, trabalhando até a exaustão. Outros se refugiam nas drogas, ou tentam se esconder de si mesmos atrás da máscara truculenta do autoritarismo e em muitas formas patológicas de viver, até que uma força vulcânica os derruba através de inúmeras doenças e do estresse.
Como não consegue dar significado à sua dor e nem compreender os sinais do seu corpo que lhe exigem atenção, o homem permanece preso a seu ferimento, o que não lhe possibilita crescimento, transformação e sabedoria; a dor que não tem sentido é a que mais faz sofrer e mata. Sua inconsciência a respeito dos próprios traumas, das suas feridas, faz com que mantenha sua dor, muitas vezes cultivando-a quando fere os que ama e aqueles que com ele convivem.
Para se libertar do sofrimento é preciso que o homem o acolha, tome consciência, reconheças as próprias feridas, ‘tome a sua cruz’ e a transforme, dando-lhe um sentido que lhe traga cura para si mesmo e também para o seu entorno, pois, uma vez curado, curará o mundo.
Como Hollis tão bem expressa:

Se as imagens que governam, consciente e inconscientemente, nossa vida só podem ser analisadas e resolvidas com o sofrimento particular e individual, a crescente capacidade dos homens de confessarem sua dor e seu raiva, de conversarem cada vez mais uns com os outros, também ajudará a curar as feridas do mundo.
(Hollis, 2004, p. 12)

O desnudar-se
(da persona)
De que, então podes gloriar-te? Mesmo que fosses tão orgulhoso e sábio a ponto de possuíres toda a ciência, saberes interpretar toda espécie de línguas e perscrutares engenhosamente as coisas celestiais, nunca deverias gabar-te de tudo isso (...)
Do mesmo modo, se fosses mais belo e mais rico que todos, e até operasses maravilhas e afugentasses os demônios, tudo isso seria estranho a ti, nem te pertenceria, nem disso te poderias desvanecer.
(Francisco de Assis)

Creio que a vida de Francisco de Assis explicita com muita clareza o arquétipo da Persona e o seu desvencilhamento. Nesse processo, Francisco nos ajuda apontando-nos o caminho da singularidade, da busca da realização do Ser; curando-nos a nós mesmos contribuiremos para a cura da sociedade e, no caso específico dos líderes, para a cura das organizações.
Ao evocar Francisco de Assis como alguém que, através de uma espiritualidade singular, viveu de maneira esplêndida o processo de individuação, deixando-nos lições de vida e liderança, é preciso ressaltar que, como todo humano, ele é filho de uma determinada época e cultura, e esses aspectos precisam ser considerados. Ele nasceu entre 1181 e 1182 (não há uma data precisa) e morreu em 3 de outubro de 1226.
Entretanto, seus valores essenciais eternizaram-se, não obstante a época em que viveu; assim como as etapas do processo de individuação são sempre as mesmas. E são essas as questões que considero relevantes para efeito deste livro.
Aos poucos, na sua juventude, Francisco foi deixando de ser o filho de Pedro Bernardone, submetido às condições de seu tempo, para se tornar a figura que hoje é conhecida em todos os continentes.
Sendo filho da uma classe média emergente, Francisco experimentou, pelo lado paterno, a força dos valores materiais e das exigências da sociedade medieval para os jovens que buscavam a ascensão. De sua mãe recebeu toda a influência sobre os valores espirituais. Ele precisou adaptar-se, e o fez definindo-se como filho de um novo-rico, vestindo-se bem e vivendo em meio aos entretenimentos de sua época, como outros tantos jovens, almejando tornar-se um nobre cavalheiro e também evitando os leprosos, indigentes e excluídos do sistema capitalista nascente.
Nesse mundo, vivendo como um jovem ambicioso, galante e bem-relacionado, participou intensamente de tudo o que lhe era possível, chegando a fazer parte da tropa da Quarta Cruzada. Observa-se, no cantor das ruas de Assis, no comportamento do jovem rico e aspirante à nobreza, parte da Persona.
A Persona de Francisco era a maneira que ele encontrou para relacionar-se com seu pai, seus amigos e a sociedade, assim como para se compreender a si mesmo. Era essa a sua garantia de sucesso e a sua base de confiança.
No entanto, por ocasião da expedição da Quarta Cruzada, sofreu um longo período de depressão. A depressão, em geral, sinaliza por parte do inconsciente que o caminho de adaptação para a vida está nos forçando a negar nossa única realidade. Nesse período ele foi cuidado pela mãe, que representava valores opostos aos de seu pai. Francisco tinha que enfatizar o lado masculino de sua natureza, enquanto estava se tornando um homem, mas necessitava do lado feminino, experimentado através de sua mãe, para poder embarcar no processo de individuação.
Certamente, tudo o que soube e presenciou durante a guerra civil ocorrida entre as cidades de Assis e Perugia, e mais o longo período de reclusão, contribuiu para o enfraquecimento daquela Persona e lhe abriu a mente para um novo jeito de pensar. Seus biógrafos viram a mão de Deus nesses eventos; Jung diria que a propensão para o encontro com o Self também se manifestou nesses acontecimentos.
Durante algum tempo, Francisco fugiu de seu pai, escondendo-se próximo da capela de São Damião. E esse esconderijo testemunhou seu processo de transformação. De algum modo, todos precisam de um espaço sagrado onde se processe a transformação interior. Trata-se do local onde a velha Persona morre e o ego entra em contato com seus valores inconscientes. É um espaço de morte e renascimento, onde se adquirem as forças para vencer os obstáculos da jornada. Certamente, nesse período, Francisco encontrou as forças necessárias para confrontar-se com seu pai.
Há um episódio marcante em sua vida que caracteriza, exemplarmente, o processo de transformação dos valores da Persona do filho de mercador e aspirante cavalheiro, nos valores de sua autêntica personalidade e vocação.
Por não concordar com o estilo de vida que ele vinha adotando, como o ‘desperdício do seu dinheiro com os pobres, desprezo pelos bens terrenos etc.’, seu pai lhe impôs intensa perseguição e exigiu sua presença diante do bispo da cidade, para que renunciasse à própria herança e lhe devolvesse tudo o que possuía.
Conta Celano, seu primeiro biógrafo, que Francisco não se recusou e, apressadamente, dirigiu-se ao encontro; sem que lhe pedissem nada, despiu-se imediatamente e entregou toda a roupa para o pai, ficando completamente nu diante de todos.
Parece-me que esse episódio é um marco decisivo na história de Francisco: o momento em que ele se livrou definitivamente da velha Persona, simbolizada pelas vestes devolvidas ao pai. Ao mesmo tempo, nasce um novo Francisco, com um novo Pai, com um novo jeito de se relacionar com o mundo. Sua Persona, que era usada como uma máscara que escondia sua natureza essencial, era agora um veículo para expressar seu relacionamento com o Self, que Jung chama de “Deus dentro de si”. Agora, Francisco usa a nudez para expressar o novo relacionamento com Deus.
Uma nova consciência se fazia presente em Francisco. Ele estava certo da sua essência e da sua vocação, do seu propósito maior: o grande chamado para a vida plena, para a realização do ser. Porque ouviu as profundezas de si mesmo, ele tinha a convicção de seu compromisso com a vida, na sua dimensão mais plena e transcendente.
Ele, agora nu, sabia que as leis que o regiam não estavam fora dele, não eram as expectativas da sociedade, nem seriam mais ‘os outros’ a determinarem seu comportamento; seria, sim, a escuta atenta da Voz que o chamava para ser ele mesmo, para a realização da sua essência.
Concordo com Graf Dürckheim, quando diz que o individuo que despertou como discípulo já pode ser considerado uma nova categoria de ser humano, isto é, um ser humano que está a caminho do Caminho, porque já tem uma nova consciência que o levará, como sujeito da própria história, a construir sua jornada. Isso implica um grande mergulho interno, para tomar consciência de si, dos seus valores, do que a vida em sua plenitude espera dele, e não mais dos apelos do mundo. Por isso, ele afirma:

Só quando o ser humano se conceber como vida, em sua própria essência, e se tornar simultaneamente independente e consciente de sua missão de servidor da vida, então como ser humano ele conceberá também como senhor do mundo, como na verdade ele está destinado a ser em sua origem supratemporal. Só quando o ser humano abandona totalmente o que lhe foi condicionado pelo mundo é que o absoluto poderá beneficia-lo. É muito natural que o ser humano esconda suas insuficiências das outras pessoas, mas só quando ele for capaz de ver-se despido e sem disfarces é que poderá surgir a pessoa que ele é de fato, sem inibições.
(Dürckheim, 2001, p. 110)

Seguramente, esse é o momento da metanóia, da grande guinada na vida, e que envolve sacrifícios, mas, ao mesmo tempo, oferece uma nova vida, em que a inteireza do ser se faz cada vez mais presente. A certeza de que há uma essência – que, para Francisco, era o próprio Deus e, para Jung, é a força do Self – é que possibilita ao individuo ingressar nesse caminho.
E cada um pode, a qualquer momento e de diversos modos, iniciar essa jornada. O chamado sempre estará presente. Quem estiver atento escutará. Poderá, como Francisco, escutar os sinais da vida: um fracasso, uma reviravolta na história, uma inquietação... Enfim, a vida proporciona a todos infinitas possibilidades de realização, e cabe a nós aproveita-las, sabendo que, para tornar-se integralmente humano e líder, será preciso desnudar-se, abandonar as velhas vestes da Persona e abrir-se ao absoluto e sempre novo que habita o âmago de cada um. Encontrar-se com a sua essência e buscar a sua transcendência é que permitirá ao individuo tornar-se humano: um ser consciente de suas responsabilidades diante da vida, maduro, seguro dos seus propósitos, convicto da sua humanidade e de sua transcendência. E somente humanos podem ser chamados de líderes.
Com certeza precisamos de coragem, de determinação, de firmeza de propósitos. E também de humildade. E ser verdadeiramente humilde não significa não querer aparecer como se é realmente, mas aceitar aquilo que é, superando as aparências.

SOMBRA: O PORTAL DA TRANSFORMAÇÃO


Hoje, como em todas as épocas, é necessário que o homem não feche os olhos para o perigo do mal que está à espreita dele mesmo.
(C.G.JUNG)

Entre os arquétipos estudados por Jung, a Sombra se destaca, junto com a Anima/Animus, como o que mais frequentemente influencia ou perturba o eu, porque aparece com o conteúdo de toda a parte inconsciente da história do individuo, constituindo, em si, um problema de ordem moral a desafiar a personalidade do eu como um todo.
Como o seu conteúdo é constituído de traços obscuros do caráter, que são de natureza emocional, e das nossas próprias inferioridades, há uma grande resistência por aceita-la. Ela pode ser entendida como uma subpersonalidade, que quer fazer aquilo que a Persona não permite.
Tudo o que foi rejeitado, negado, reprimido constitui a Sombra. Ela forma, pois, o centro do inconsciente pessoal, incluindo aqueles desejos, tendências, memórias e experiências que são rejeitados pelo indivíduo com incompatíveis com a Persona e contrários aos padrões e ideais sociais.

Um comentário:

Jorge "Negrão" disse...

será que estamos preparados para grande mudança em nossas vidas, a reposta esta no íntimo de cada um.